"Grantaire, completamente bêbedo, atordoava os ouvidos dos que o rodeavam, num dos cantos, discorrendo em voz atroadora e gritando:
Tenho sede. Mortais, eis o meu desejo: que o tonel de Heidelberga tenha um ataque apoplético e que eu seja uma das doze sanguessugas que lhes mandem aplicar. Eu queria beber, porque desejo esquecer a vida. A vida é uma hedionda invenção de não sei quem. Uma coisa que não dura nada e nada vale; e matamo-nos para viver. A vida é uma armação quase a vir abaixo. A felicidade, um painel pintado só de um lado. O Eclesiastes diz que tudo é vaidade, e eu penso como este pobre homem que decerto nunca existiu. Zero vestiu-se de vaidade, porque não queria andar nú. Ó vaidade, que tudo encobres com os teus palavrões! Uma cozinha é um laboratório, um dançarino é um professor, um saltimbanco é um ginasta, um jogador de soco é um pugilista, um boticário é um químico, um cabeleireiro é um artista, um pedreiro é um arquitecto, um jóquei é um desportista, um bicho-de-conta é um pterigobrânquio. A vaidade tem avesso e direito; o direito é estúpido, é o preto coberto de avelórios; o avesso é tolo, é o filósofo coberto de farrapos. Lamento um e rio-me do outro. As chamadas honras e dignidades, e mesmo a honra e a dignidade, são geralmente coisas que nada valem. Os reis fazem um joguete do orgulho humano. Calígula fazia cônsul o seu cavalo; Carlos II armava cavaleiro um lombo de vaca. Ora imaginai-vos entre o cônsul Esporeado e o barão Bife. (...)"
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