AS ASAS DO DESEJO (1987) - WIM WENDERS












Wim Wenders começou a sua carreira cinematográfica no final dos anos 60, durante a vaga do Novo Cinema Alemão, sendo um dos realizadores mais conhecidos desta nova geração que, influenciada pela Nouvelle Vague, contestava os modos tradicionais de fazer cinema. Após ter filmado Paris, Texas nos EUA e Tokyo-Ga no Japão, regressa à Alemanha para fazer As Asas do Desejo, cujo título original é Der Himmel über Berlin
Em traços gerais, As Asas do Desejo conta a história de um anjo que se apaixona por uma mulher humana e desiste da sua condição de entidade espiritual e imortal para poder estar com ela. A linha narrativa é simples e não domina o filme, dilui-se nele, servindo apenas de fio condutor a um guião minimalista que, na sua estrutura, é uma sucessão de episódios quotidianos ligados através do texto, sempre presente, e de uma câmara em constante movimento. 
Desde o início, Wenders coloca o espectador dentro do olhar de dois anjos, Damiel e Cassiel, que nos guiam numa viajem pela cidade de Berlim. A câmara, como se estivesse a voar, mostra-nos belas imagens a preto e branco da cidade e dos seus habitantes, cujos pensamentos conseguimos ouvir. Observamos a vida a partir de fora e, ao mesmo tempo, a vida espiritual das pessoas através dos seus pensamentos. Somente as crianças conseguem ver os anjos. As pessoas adultas estão ignorantes da presença de alguém que as observa, apenas os pressentindo em certos momentos. Por seu lado, os anjos não podem intervir para além do consolo espiritual que por vezes transmitem, são apenas testemunhas, espectadores. 
Progressivamente, a atenção de Damiel e Cassiel é focada numa tríade de personagens sem ligação umas com as outras: Marion, a trapezista por quem o anjo Damiel se apaixona; um o actor americano que se encontra em Berlim a rodar um filme sobre a Segunda Guerra Mundial; e Homer, um homem idoso que reclama para si a missão de contador das histórias da humanidade. Este ultimo, representa algo que se perdeu e lastima a evolução dos tempos, que faz com que as pessoas, que já não se sentam juntas para ouvir as suas histórias, se tenham alienado da forma narrativa. 
As Asas do Desejo é, também, um filme acerca de Berlim. Rodado pouco antes da queda do muro, retrata uma cidade traumatizada física e psicologicamente. O muro está quase sempre do horizonte, mesmo quando não se pode ver sabemo-lo lá, assim como os traumas da guerra que assombram constantemente os personagens de formas subtis e profundas. 
Em As Asas do Desejo, Wim Wenders alterna entre o ponto de vista dos anjos, que domina o filme quase até ao fim, e o ponto de vista das pessoas. O mundo dos anjos é um mundo a preto e branco, povoado pelo som dos pensamentos humanos, um mundo espiritual. A realidade vista por olhos humanos é colorida, sensual, uma realidade em que a espiritualidade apenas pode ser pressentida. Wenders utiliza este contraste entre uma vida puramente espiritual, sem sensações físicas nem tempo, e a experiência física da vida para fazer uma reflexão acerca da condição humana. Os anjos são omniscientes e sabem tudo mas não têm a experiência de estar restritos pelo tempo e pelo espaço, não vêm cores, não sentem o toque, não experienciam os sentimentos humanos e mostram, desde o início do filme, curiosidade por estas experiências e cansaço da sua própria condição: “It's great to live only by the spirit, to testify day by day for eternity only to the  spiritual side of people. But sometimes I get fed up with my spiritual existance. (...) Instead of forever hovering above I'd like to feel there's some weight to me”. Não é apenas por amor que Damiel decide deixar de ser anjo. A sua opção é, também, motivada pela vontade de construir a sua própria narrativa pessoal, de viver dentro do tempo. 
Apesar de As Asas do Desejo ser uma obra muito visual, o texto escrito que a percorre tem também grande importância, resultando numa conjugação muito particular de cinema com literatura. O texto foi co-escrito por Peter Handke (que colaborara já com Wim Wenders em filmes como A Angústia do Guarda Redes no Momento do Penalty de 1972) e tem inúmeros momentos de conversas densas e filosóficas, principalmente entre os dois anjos. Outro elemento do texto marcante ao longo do filme é o poema sobre a infância que funciona como leit-motif, ajudando a dar coerência ao todo. Este poema assinala o início e o final e aparece pontualmente durante o filme, começando sempre com a expressão “Als das Kind Kind war” (“Quando a criança era uma criança”) completada com diferentes reflexões acerca de como é ver o mundo pelos olhos de uma criança. Ao longo do filme, em que adoptamos quase sempre a perspectiva dos anjos vamo-nos apercebendo que, para eles, as crianças são a humanidade. Quando Damiel se torna humano, ele próprio se comporta como uma criança entusiasmada com tudo (desde as cores dos desenhos no muro, até ao sabor do seu próprio sangue), convidando o espectador a olhar o mundo como se o visse pela primeira vez. 











Wim Wenders began his film career in the late '60s, during the New German Cinema. He is one of the best known directors of this new generation, influenced by the Nouvelle Vague, that challenged traditional modes of filmmaking. Having filmed Paris, Texas in the U.S. and Tokyo-Ga in Japan, he returned to Germany to fim Wings of Desire, whose original title is Der Himmel über Berlin.
Broadly speaking, Wings of Desire tells the story of an angel who falls in love with a human woman and gives up its status as immortal angel to be with her. The storyline is simple and does not dominate the film, it is simply a guide to a minimalist script that, in its structure, is a sequence of everyday episodes connected by the text, always present, and by a camera constantly moving.
From the beginning, Wenders putsus in the eyes of two angels, Damiel and Cassiel, who guide us on a journey through the city of Berlin. The camera, as if it flys, show us beautiful images of the city  in black and white city and its inhabitants, whose thoughts we can hear. We see life from the outside and, at the same time, the people's spiritual lives through their thoughts. Only children can see the angels. Adults are ignorant of the presence of someone who observes them, only the sensing it at times. For its part, the angels can not act beyond this spiritual solace that sometimes give, they are only witnesses, spectators.
Increasingly, the attention of Damiel and Cassiel is focused on a triad of characters unrelated to each other: Marion, the trapeze artist for whom the angel Damiel falls; an American actor who is in Berlin to make a film about the World War II, and Homer, an old man who claims to himself the mission of the storyteller of humanity. The latter represents something lost and regrets the evolution of time, which means that people no longer sit together to hear his stories and have disposed of the narrative.
Wings of Desire is also a film about Berlin. Filmed just before the fall of the wall, it depicts a traumatized city, physically and psychologically. The wall is almost always on the horizon, even when we can not see it we know it´s there, as well as the traumas of the war that constantly haunt the characters in subtle and profound ways.
In Wings of Desire, Wim Wenders toggles the view of angels, that dominates the film almost to the end, and the point of view of people. The world of the angels is a black and white world, populated by the sound of human thought, a spiritual world. The world seen by human eyes is colorful, sensual, a world in which spirituality can only be sensed. Wenders uses this contrast between a life purely spiritual, without physical sensations or time, and the physical experience of life to make a reflection about the human condition. The angels are omniscient and know everything but do not have the experience of being restricted by time and space, do not sense colours, do not feel touch, do not experience human feelings and show, from the beginning of the film, curiosity about the human experience and fatigue of their own condition: "It's great to live only by the spirit, to testify day by day for eternity only to the spiritual side of people. But Sometimes I get fed up with my spiritual existance. (...) Instead of forever hovering above I'd like to feel there's some weight to me. " It's not just for love that Damiel decides to not be an angel. His choice is also motivated by the desire to his their own personal narrative, to live within time.
Although Wings of Desire is a very visual film, written text that also has great importance, resulting in a very particular combination of cinema and literature. The text was co-written by Peter Handke (who has collaborated with Wim Wenders on such films as The Goalkeeper's Anxiety at the Penalty Kick, 1972) and has many moments of dense and philosophical conversations, especially between two angels. Another striking element of the text throughout the film is the poem about childhood that serves as leit-motif, helping to give coherence to the whole. This poem marks the beginning and end, and occasionally appears in the film, always beginning with the phrase "Als Kind Kind of War" ("When the child was a child") supplemented with different ideas about how to see the world through the eyes of a child. Throughout the film, they often adopt the perspective of the angels let us realizing that for them, children are humanity. When Damiel becomes human, he behaves like a child excited about everything (from the colors of the drawings on the wall, to the taste of your own blood), inviting the viewer to see the world as if seeing it for the first time.



BELLE DE JOUR (1967) - LUIS BUÑUEL








Belle de Jour é o segundo filme realizado por Buñuel no seu regresso a França após mais de 30 anos. Entre o início dos anos 30 e meados dos anos 60, o realizador espanhol passou temporadas em Espanha, Estados Unidos e México, tornando-se cidadão mexicano em 1949. Neste país, Buñuel filmou mais de 20 filmes e permaneceu até ao final da sua vida, passando períodos a filmar em França e Espanha.

Em Belle de Jour, Severine é uma jovem mulher burguesa e frígida que, atormentada por fantasias masoquistas, decide prostituir-se durante o dia enquanto o marido está no trabalho. Belle de Jour, nome adoptado por Severine no local de trabalho e escolhido pela dona da casa, madame Anais, é a expressão utilizada para designar uma prostituta que trabalha durante o dia. Catherine Deneuve, ícone do cinema francês, compõe uma das personagens mais marcantes da sua longa carreira. Mulher refinada e inatingível, Severine é  enigmática até ao fim. Sabemos, desde o inicio, que a sua frigidez tem origem em acontecimentos da infância, mas o seu íntimo é imperscrutável. Tal como todos os restantes personagens, esbarramos sempre na expressão fria do rosto de Deneuve e no silêncio quase constante da personagem.

Em Belle de Jour, somos espectadores da vida secreta de Séverine, voyeurs. Seguimo-la para todo o lado, facto que é acentuado pelos movimentos de câmara. Assistimos à sua inevitável decadência, observamos a transformação de atitude que se dá, desde as primeiras experiências no bordel, e vemo-la desenvolver uma relação intensa e destrutiva com um dos clientes. Mas, apesar de a observarmos na intimidade, o único acesso que Buñuel nos dá ao interior da personagem são as visões dos sonhos que penetram a realidade quotidiana de Severine.

A temática do sonho e a sua relação com a realidade é um dos pontos centrais na obra de Buñuel cujos filmes se caracterizam pela integração de um imaginário surrealista, perturbante e, muitas vezes, ligado a uma sexualidade reprimida. Este filme não é uma excepção, apresentando um surrealismo amadurecido e subtil. A personagem inicia, com a exploração da sua sexualidade, uma espiral que a aliena cada vez mais da realidade e o filme acompanha-a, tornando-se cada vez mais difícil distinguir os limites do devaneio. O próprio final do filme é alvo de grandes discussões acerca do seu significado, que o próprio Buñuel recusa esclarecer.

Belle de Jour, como várias das obras mais conhecidas de Buñuel é uma crítica aos valores da classe burguesa, no seio da qual ele próprio cresceu. Inspirado pelas teorias de Freud, o cineasta analisa o seu próprio meio e tenta fazê-lo implodir, colocando a nú os mecanismos de repressão postos em prática pela sociedade e pelas relações de poder inerentes a esta. 





Belle de Jour is Buñuel's second film by in his return to France after more than 30 years.Between the early 30s and mid 60s, the Spanish director spent seasons in Spain, the United States and Mexico, becoming a citizen of Mexico in 1949. In this country, Buñuel filmed more than 20 films and remained until the end of his life, passing periods filming in France and Spain.In Belle de Jour, Severine is a frigid and bourgeois young woman who, tormented by masochistic fantasies, decides to prostitute herself during the day while her husband is at work. Belle de Jour, the name adopted by Severine at herr workplace and chosen by the hostess, Madame Anais, is the term used to describe a prostitute who works during the day. Catherine Deneuve, French cinema icon, compose one of the most remarkable characters of her career. Refined and unattainable woman, Severine is an enigmatic character until the end. We know from the beginning, that her frigidity stems from childhood events, but her heart is inscrutable. Like all other characters, we always bump in the cold expression of Deneuve's face and her almost constant silence.In Belle de Jour, we are spectators of the secret life of Séverine, voyeurs. We follow her around everywhere and this is accentuated by camera movements. We watch its inevitable decay, we observe the transformation of attitude that comes about, from the first experiments in the brothel, and see it develop an intense and destructive relationship with one of her customers. But, though the look in their intimacy, the only access that Buñuel gives us the inside of the character are the visions of dreams that penetrate the daily reality of Severine.The theme of the dream and its relation to reality is one of the central points in  Buñuel's work, whose films are characterized by the integration of an imaginary surreal, disturbing and often linked to a repressed sexuality. This film is no exception, presenting a mature and subtle surrealism. The character starts with the exploration of his repressed sexuality, a spiral that alienates more and more of reality and the movie follows it, making it increasingly difficult to distinguish between the bounds of reverie. The very end of the film is the subject of much discussion about its meaning, which Buñuel refuses to clarify.Belle de Jour, as several of the best known works of Buñuel is a critique of the bouregeois class values, within which he grew up. Inspired by Freud's theories, the filmmaker examines his own environment and tries to make it implode, putting bare the mechanisms of repression put in place by society and power relations inherent in this.