LES ENFANTS DU PARADIS (1945) – MARCEL CARNÉ







Considerado um dos filmes mais importantes da história do cinema, Les enfants du Paradis (Os Rapazes da Geral) resulta da colaboração entre Marcel Carné e o escritor Jaques Prévert. Carné e Prévert fizeram várias obras em conjunto, tendo os seus filmes ajudado a estabelecer o realismo poético, tendência predominante no cinema francês durante a Segunda Guerra Mundial, que se caracteriza por um realismo de estilo lírico, filmado em estúdio, com um tom pessimista e cujos personagens vivem, geralmente, à margem da sociedade. O realismo poético é apontado como uma das grandes influências do cinema noir que se desenvolveu na mesma altura nos EUA.
A rodagem de Les Enfants du Paradis, iniciada na França ocupada, mesmo antes de terminar a Segunda Guerra Mundial, foi cheia de peripécias. A equipa teve de contornar uma série de restrições impostas pelo governo de Vichy: desde a limitação da duração dos filmes, que não podiam ter mais de 90 minutos (o que obrigou a que Les Enfants du Paradis fosse dividido em duas partes), passando pela clandestinidade de alguns membros judeus da equipa, até, claro, à censura.
A acção passa-se quase toda na “Boulevard du Crime”, rua famosa pelos seus teatros durante o século XIX, recreada em estúdio, e põe em cena personagens baseadas em figuras históricas da época. A reconstituição de época foi feita com grande pormenor, contando com cenários e figurinos de luxo e uma equipa de figurantes gigantesca.
O filme gira em torno de Garance, uma bela mulher de espírito livre, por quem uma série de outros personagens se apaixonam. Entre esses personagens encontram-se Baptiste, o mimo romântico e idealista, que só quer estar com Garance se ela o amar da mesma forma que ele. A história de amor entre estes dois personagens é o motor principal do filme. Os outros três pretendentes ao amor de Garance são Frederick Lemaitre, um histriónico actor admirador de Shakespeare que é, talvez, o que mais tem em comum com Garance (com a sua atitude despreocupada perante as relações); Lacenaire, um “dandy do crime”, revoltado com a sociedade; e o conde de Montray, homem rico, habituado a ter/comprar tudo aquilo que quer. Outra personagem importante nesta teia de amores é Nathalie, perdidamente apaixonada por Baptiste, apesar de este não retribuir esse amor.
A acção decorre ao longo de vários anos. A primeira parte do filme (Boulevard du Crime) introduz os personagens e as relações entre eles. Existe um lapso de tempo de cerca de dez anos entre a primeira e a segunda parte (L’homme Blanc), na qual os personagens se voltam a encontrar, pintando um retrato realista dos efeitos do tempo e das escolhas sobre as relações.
Essencialmente, o tema de Les Enfants du Paradis é o amor e as várias formas de amar, representadas por cada um dos personagens. O tratamento do amor e da sexualidade no filme é feito de forma bastante revolucionária para a época, sem falsas modéstias da parte dos personagens, especialmente de Garance, cuja atitude é vista como natural e retratada sem preconceitos. Os diálogos colocados na boca dos vários personagens são bastante extensos e poéticos. O teatro é utilizado como metáfora para a vida, na medida em que todos os personagens do filme são actores da sua própria peça. Os bastidores do teatro e o mundo da marginalidade da época são retratados com grande sentido de humor, através de uma galeria de personagens variados e carismáticos. Muitas vezes, podemos ver actuações inteiras, tanto do mimo Baptiste como de Frederick, que é um provocador que questiona as regras tradicionais do teatro.
Les Enfants du Paradis foi um dos últimos filmes a ser rodado no contexto da França ocupada e um dos primeiros a estrear na França libertada. Apesar das restrições que tiveram de enfrentar, Carné e a sua equipa conseguiram contornar a censura e introduzir elementos de resistência simbólica e temáticas antiautoritárias. Uma leitura possível do filme identifica Garance (e o seu desejo de liberdade) com a França, o conde com a ocupação, Lancenaire com a resistência. Baptiste e Lemaitre (entre outros personagens secundários) simbolizam as várias atitudes da população perante a situação.
Umas décadas depois de realizar Enfants du Paradis Carné foi rejeitado pela Nouvelle vague e ficou como um dos representantes do cinema velho francês devido ao facto de filmar em estúdio e de usar cenários e outros artifícios elaborados, e por se apoiar numa equipa grande que partilhava a “autoria” com ele.


________________________________________________________________


Considered one of the most important films in cinema history, Les enfants du Paradis is a collaboration between Marcel Carné and writer Jacques Prévert. Carné and Prévert made several films together, helping to establish poetic realism, dominant trend in French cinema during the Second World War, which is characterized by a style of lyrical realism, shot in studio with a pessimistic tone and whose characters live, usually, on the fringes of society. The poetic realism is considered one of the great influences of film noir that developed at the same time in the U.S..
The shooting of Les Enfants du Paradis, which began in occupied France,  before end of World War II, was full of adventures. The team had to overcome a number of restrictions imposed by the Vichy government: from restrictions in duration, which could not surpass 90 minutes (which forced  the division of Les Enfants du Paradis into two parts), through  hiding of some jewish members of the team, until, of course, censorship.
The film is set almost entirely in the "Boulevard du Crime", street famous for its theaters during the nineteenth century, recreated in studio, and brings into play characters based on historical figures of the time. Period reconstitution  was made with great detail, with deluxe sets and costumes and a gigantic team of extras.
The film revolves around Garance, a beautiful free-spirited woman, with whom a series of other characters fall in love. Among these characters is Baptiste, a romantic and idealistic mime, who only wants to be with Garance if she love him the same way. The love story between these two characters is the main engine of the film. The other three contenders for the love of Garance are Frederick Lemaitre, a histrionic actor, admirer of Shakespeare, that is perhaps the most similar with Garance (with his carefree attitude towards relationships); Lacenaire, a "crime dandy", disgusted with society; and the Earl of Montray, a rich man, used to have / buy everything he wants. Another important character in this web of love is Nathalie, hopelessly in love with Baptiste, although he does not reciprocate that love.
The action takes place over several years. The first part of the film (Boulevard du Crime) introduces the characters and the relationships between them. There is a time lapse of about ten years between the first and second part (L'homme Blanc), in which the characters meet again, painting a realistic picture of the effects of time and choices in relationships.
Essentially, the theme of Les Enfants du Paradis is Love and the various forms it can take, represented by each one of the characters. The treatment of love and sexuality in the film is quite revolutionary for the time, without false modesty on the part of the characters, especially Garance, whose attitude is seen as natural and portrayed without prejudice. The dialogues are quite extensive and poetic. The theater is used as a metaphor for life, where all the characters in the film are actors in their own play. The backstage world of the theater and the marginality of the time are portrayed with great sense of humor, through a gallery of characters, varied and charismatic. Often, we see entire performances, both from mime Baptiste and Frederick, who is a revolutionary who questions the rules of traditional theater.
Les Enfants du Paradis was one of the last films to be shot in the context of occupied France and one of the first to debut in released France. Despite the restrictions they had to face, Carné and his team managed to circumvent censorship and introduce elements of symbolic resistance and anti-authoritarian themes. One possible reading of the film identifies Garance (and their desire for freedom) with France, the Count with the occupation and Lancenaire with resistance. Baptiste and Lemaitre (among other minor characters) symbolize the various attitudes of the population towards the situation.
A few decades after doing Enfants du Paradis Carné was rejected by Nouvelle Vague and stood as one of the representatives of the old French film due to shooting in studio and using elaborate sets and other devices, and by relying on a big team that shared the "authorship" with him.