"O sentimento, por definição, surge em nós sem que disso nos apercebamos e muitas vezes contra nossa vontade. A partir do momento em que queremos experimentá-lo (a partir do momento em que decidimos experimentá-lo, como Dom Quixote decidiu amar Dulcineia), o sentimento já não é sentimento, mas imitação de sentimento, sua exibição. É o que correntemente se chama histeria. É por isso que o homo sentimentalis (ou por outras palavras, o homem que erigiu o sentimento em valor) é na realidade idêntico ao homo hystericus.
O que não quer dizer que um homem que imita um sentimento o não experimente. O actor que desempenha o papel do velho rei Lear sente no palco, frente aos espectadores, a autêntica tristeza de um homem abandonado e traído, mas essa tristeza evapora-se no preciso instante em que a peça termina. É por isso que o homo sentimentalis, logo a seguir a ter-nos assombrado com os seus grandes sentimentos, nos desconcerta com a sua inexplicável indiferença."

in A Imortalidade / Nesmrtelnost (1990) - Milan Kundera

" Mais cedo ou mais tarde, confrontados com a evidência diária da nossa interdependência, acabaremos por reconhecer que ninguém pode reclamar a propriedade indivisa da Terra, ou de qualquer parte dela. O mais relevante na nossa interdependência é que a «solidariedade do destino» não é uma questão de escolha. O que depende verdadeiramente da nossa escolha é decidir se esse destino comum terminará em destruição mútua ou gerará uma solidariedade de acção, sentimentos e propósitos. Independentemente dos nossos diversos credos políticos ou religiosos, muitas vezes agudamente distintos e por vezes ardentemente antagónicos, todos desejamos viver com dignidade, sem humilhações, sem medo, sem que nos seja negada a felicidade. Este é um terreno vasto e suficientemente sólido para começar a construir uma solidariedade de pensamento e acção."

in A Sociedade Sitiada (2002) - Zygmunt Bauman

"(...) seria bom que os que se suicidam e não nos deixam ignorar o facto soubessem, de uma vez por todas, que não provocam tristeza, da autêntica, nem remorsos. E contudo é esse sempre o objectivo deles. O que provocam é uma farsa, ou uma desesperada tentativa de farsa. E que faz que os amigos visados, por muito aflitos que estejam, se preocupem muito mais com explicar aos outros como não puderam compreender: «Sabes bem como ele era», em resumo, estejam mais preocupados em forjar um alibi do que a chorar o morto. (...) Mas há um verdadeiro pesadelo para os que ficam, é o «se». O condicional, o tempo do condicional tal como é conjugado aborreceu-me sempre prodigiosamente. Para mim, «se eu tivesse sabido», «se eu tivesse compreendido», em resumo, o «se» foi sempre uma coisa morta, porque imaginada antes de ter sido vivida e, portanto, forçosamente inadmissível. O «se» pareceu-me sempre o cúmulo da estupidez, da zombaria e do desprezo, porque afinal, se soubéssemos por que razão vivemos, se soubéssemos porque morre alguém a quem amamos, ou ainda mais estupidamente, porque razão já não nos ama alguém a quem amamos, saberíamos muita coisa! O horror que acompanha o suicídio dos nossos amigos é devido ao facto de dizermos mais uma vez o «se» e verificarmos que ele se fixa bruscamente, ou, pelo menos, é assinalável no espaço e no tempo: «Que estupidez, deixei o Arthur às três horas e parecia bem disposto. Se tivesse adivinhado que...» «Que estupidez, cruzei-me com ele à frente do flore, disse-me adeus com a mão. Se...». E esta multidão de pequenas recordações que todos nos vêm relatar torna-se num bando de tubarões decididos a darem cabo de nós. Todas essas recordações ocupam um lugar no tempo e no espaço, são portanto insuportáveis. porque afinal, se ler num jornal que o Arthur morreu  num desastre de automóvel (...), segundo as minhas relações com o Arthur, dou com a cabeça na parede, telefono à mãe dele, choro ou digo simplesmente: «Coitado do Arthur, guiava mal.» Mas se o mesmo Arthur decidiu que a vida já não era possível, e portanto, de certa maneira, tomou decisões sobre a minha vida, uma vez que era um amigo, se ninguém o pôde impedir, nem os amigos dele nem os meus, nem sequer eu, o Arthur está morto e arrefece algures, sou levada a perguntar a mim mesma se ele não teria às vezes razão, esse Arthur ou qualquer outro. O suicida reduz a nada não só o coração dos outros, a ternura que sentem por ele, o sentido da responsabilidade, mas também a sua razão inicial de viver, que não é mais, se pensar bem no assunto, do que uma respiração e um latejar no pulso, é, às vezes, um olhar encantado diante de um jardim, de um ser humano ou de um projecto, por muito estúpido que seja. O suicídio deita tudo isto abaixo. Os suicidas são muito corajosos e muito culpados.(...)"

in Viver não Custa... / Des Bleus À L'Âme (1972) - Françoise Sagan

"A depressão é um assunto que está muito na moda, mas que não deixa por isso de ser fascinante. Comecei este romance-ensaio assim, com uma descrição deste estado. Desde então encontrei quinze casos semelhantes, e só escapei a uma depressão graças a esta estranha mania de alinhar palavras umas a seguir às outras, palavras que começavam a brotar em flores aos meus olhos e em ecos dentro da cabeça. E sempre que encontrava uma vítima da depressão, essa catástrofe - porque não se pode brincar com este assunto, nem falar de ociosidade ou de desleixo -, enternecia-me. Aliás, pensando bem, porque escrevemos senão para explicar aos «outros» que podem escapar a essa doença, ou, pelo menos, curar-se? A absurda e ingénua razão de ser de qualquer texto, romance, ensaio ou mesmo tese, é sempre esta mão estendida, este desejo incontido de provar estupidamente que há qualquer coisa a provar. É esta maneira cómica de querer demonstrar que há forças, correntes de força, correntes de fraqueza, mas que tudo isso é relativamente inofensivo na medida em que é formulável."

in Viver não Custa / Des Bleus À L'Âme (1972) - Françoise Sagan